Caos - Fertilidade e Mistérios
Helder Ferrer
Outubro a Dezembro de 2018
A Poética do Caos
Na convulsão dos pesadelos - assim como na turva travessia das noites da história - a inquietude procura a luz, a terra firme do amanhecer, a decifração de uma forma que os sentidos traduzam como paz e repouso. É assim em todo enredo que abre as cortinas à tormenta mas que aos poucos nos conduz ao sereno aconchego das cenas de calma, aos desfechos do fim. Na dramaturgia ninguém superou Shakespeare nesse trânsito do estrondo para o alento, da espada para o riso, do conflito para o amor. Na obra do bardo de Stratford-upon-Avon, a peça A Tempestade - provavelmente sua última criação - resume a mestria dramatúrgica ao trazer o espectador do caos de um mar em fúria para uma ilha de sonho, magia e elevação. É desse retorno de um mundo caótico (de agora) que o fotógrafo Helder Ferrer parece ancorar as imagens de uma natureza tropical, úmida, noturna, solar - cenários da Mata Atlântica.Uma atmosfera de ilha, de floresta shakespeariana - também Sonho de uma noite de verão - que nos remete aos mistérios da convivência com cada uma dessas imagens.
Digo “convivência” - e não apenas “olhar” - porque foi antes o olhar do artista que captou esses instantes em convivência íntima, e a partir de então essa convivência pertencerá ao olhar do outro que durante horas, dias ou uma vida inteira irá explorar e habitar seus silêncios azuis, cada grão ou tonelada de seus verdes, cada nota da partitura que ainda se ouve no espelho do riacho. Pois é o artista, o fotógrafo como poeta da luz, quem primeiro desenha com tudo que depara sua lente. Ele é autor e coautor desses universos vertidos pela natureza que agoniza lá fora e que se renova aqui, diante de nós. Em sua poética há algo de música semeando nossa imaginação, nossa fé ancestral, pulsando nas folhas que lembram nossa imaturidade mas também - e aqui reside o olhar sensível de Helder Ferrer - no fruto vermelho que nos sugere a madureza, no broto que verga para o renascimento da vida.
Para quem escreve sobre arte, uma exposição como Caos - fertilidade e mistérios provoca o imaginário das reminiscências que conduzem a uma reflexão mais profunda sobre seu sentido, à conclusão da importância da vida e seu permanente recomeço. Mas é preciso cuidar. Cuidar do que nasce, do que resiste, do que fenece. As imagens de Helder Ferrer nos fazem pensar em nossa transcendência: eis a nossa impermanência. Observar essas imagens - o musgo, o mofo, a mancha, a crosta, o galho, seus liquens -, dialogar com esse livro da vida, com o pântano que dança com seu alfabeto de reflexos, identificar uma primeira página, reinventar seu enredo e decifrar o seu fim é ser parte de um eterno recomeço. A pele das folhas secas, a casca dos troncos, seu fosco, seu brilho, os verdes e ocres de sua juventude e velhice são metáforas de nossa vitalidade e finitude, mas também sugerem, no húmus da floresta, a fertilidade do esteio para os que venham depois.
Assim como a luz que desbrava essa paleta e invade seus matizes - semente que no escuro se revela em ouro, nos arcos das folhagens que guardam suas asas -, a multiplicação de traços, curvas e inscrições tatuadas em tantas formas nos permite enxergar, nomear, reinventar as cores que na luz da madrugada transmudam-se em azuis nos dedos das avencas, essas palmeiras feitas do céu que despeja o dia. Uma luz que explode no emaranhado de uma mata que poderia ser o bosque ou a floresta de qualquer lugar do planeta. Cada cor é um halo do pensamento, um grito da natureza pela sua e pela nossa preservação, um libelo que se faz trincheira para a sobrevivência de seu próprio algoz. Neste ponto, esse conjunto de fotografias também é um testamento - epitáfio da folha que tem como lembrança a corredeira da vida, o branco do tempo no musgo do tronco - ou o coro de milhões de vozes em cada verde que se impõe sob a luz.