Enquanto Caminho
Sobre a carta escrita na beira-mar e sua leitura durante um outro caminhar
Oriana Duarte
Preciso me lançar à superfície, e quando nela estiver, colocarei um pé bem próximo à frente do outro para em seguida, como experiência primeira, sentir alegria ao alargar do passo – esse foi meu pensar alto quando convidada a esta escrita. Mas, enquanto perseguia a primeira palavra, entendi ser antes preciso me levantar e sair, ir para a beira, operar o fora e, tal como Bete nos mostra, imergir no caminhar.
Quando, durante uma caminhada na beira-mar Bete me contou sobre seu trabalho, apreendi a proposta como se fosse uma carta sendo escrita. Enquanto escutava o relato do seu processo em curso, senti desperta a intuição de que seu corpo artista não suportaria tal intensidade senão pelo dizer próprio das descrições epistolares, ou seja, compactuando minuciosamente as impressões corporificadas dos momentos vividos. Passei a observar as pinturas que surgiam sobre papéis comumente saturados de tintas à base de água, sobretudo guache e aquarela. Permaneci atenta as micro percepções inscritas nos volumes em formas dispersas, no apuro da luz refletida e oscilante, na paisagem sem predomínio de horizonte e na sutil abstração da transversalidade compositiva. A mim, a princípio, cabia ler a carta (imaginária) através de fragmentos do seu olhar pictórico, e neles havia o excesso próprio das sobras, daquilo que bem podia não mais estar. Porém, repentinamente, das microformas surgidas como resíduos de um naufrágio em abandono de maré, passei a escutar um murmúrio, ou melhor, o soletrar de nomes de fantasmas, nomes daquilo tudo que estamos deixando em meio ao intensificar das mudanças do macro ambiente terrestre. Neste sentido, a contenção do gesto desenho amplifica a catástrofe desses pedaços de coisas, comumente emboladas por fina areia. Já pela amplidão do gesto pintura, irrompe a transfiguração extática da paisagem, agora captura de uma imagem mental, um enigma em plano aberto, cuja artificialidade desvela o achatamento da vertigem distópica: um cão me olha e um avião desvia meu olhar à cegueira do azul – a cor que flutua – e assim, em seu estranho tempo, permanece o cão a me olhar.
A condição espaço temporal expressa no título da exposição pela conjunção “enquanto”, em sua fluidez, abre uma via de apreendermos as obras em sua extensão processual. Disto, suponho, vem a significativa horizontalidade da série de aquarelas que delimita o painel presente na antessala do espaço expositivo - campo de deslizamento à sua saída para fora enquanto faz doutoramento em Belas Artes na cidade de Lisboa, sobretudo na sua finalização, entre 2017 e 2018. Também, no painel há o registro do estar fora experienciado em seu retorno ao Brasil, enquanto mantém o delinear propositivo da obra, finalizada neste ano de 2022. O processo como obra, aqui se faz enquanto partilha de situações criadas pela atitude-viajante: registros de passeios, travessias por caminhos possíveis, paradas para contemplar o escorrer de horizontes no aparente eterno das umidades moventes - mar, rio, mata. É quando insere aquarela na sua prática pictórica, agora fora do ateliê, em andanças pelas praias portuguesas de Ericeira, São João da Caparica, Praia das Maças, do Meco, Galapos, em Bagnols Sur Céze na França, praia de Piedade, na ocasião, sua morada brasileira, entre outras tantas águas. Bete me conta que cada qual desses lugares compactuam com o que há de fluído no desbotar dos traçados em aquarela, bem como alimenta o seu interesse ao que entende ser próprio desta relação com o ambiente: o descontrole técnico – aspecto que busca como que em desafio a própria maestria. Não à toa, também acessamos o registro em vídeo de momentos de seu processo enquanto pinta aquarelas em passeios de barcos - ambiência de corpo solto. E não será tal desprendimento a expressão de disponibilidade a experiência do agora, que é mesmo a vivência do enquanto? Arrisco afirmar este descontrole técnico também como a chave conceitual operada ao seu caminhar de beira-mar, quando do evanescer dos rastros emergem as formas estranhas e delicadas de uma iminente finitude. Exemplo disto é o operar vertiginoso de um ponto de vista que de tanto fixar o olhar para baixo se desdobra em sobrevoo cartográfico, cujo efeito dificilmente não sentimos: o chão como pele em aderência na retina. São várias obras que acionam esse olhar que chega muito perto, tão perto ao ponto de capturar rastros que animam coisas e evocam o acaso fortuito dos encontros surrealistas, inclusive em sua aspiração de reencantamento de mundo. Importante ressaltar que a força poética e desestabilizadora do surrealismo também está presente em suas pesquisas acadêmicas, nas quais amplia percepções sobre pintura investigando conceitos como infra-minces de Duchamp e das Unheimliche, “o estranho inquietante” de Freud, conceito já tomado como “a expressão íntima da imagem surrealista”.
Impulsionada por esse intenso processo, retomei a pesquisa sobre o caminhar para além do reconhecido legado das suas práticas no campo da arte do século XX, legado ao qual, decerto a presente exposição agora faz parte. Busquei outros lugares, sobretudo porque, atualmente, o caminhar vem sendo foco de atenção em diversas áreas de estudo, de modo que a sua história é contada em várias versões. Entre essas, particularmente uma muito me afetou, ao ponto de lhe operar como lente as minhas reflexões sobre o caminhar de Bete: vem dos estudos paleontropológicos a certeza de que os passos característicos de uma deambulação ereta deixados por um Australopithecus afarensis adulto e seu filho há 3.700.000 anos, são o testemunho mais antigo da existência humana. E foi assim, imaginando as marcas de um percurso solidificado no lodo vulcânico de Laetoli, na Tanzania, que não somente atravessei os quadros espaciotemporais da história, como também descobrir um modo de lidar com a nossa complexa contemporaneidade. Presentificado enquanto caminho pela obra de Bete, trata-se, tão somente de sentir o mundo com alegria - modo outro, aqui possível, no reafirmar da arte enquanto prática libertadora das nossas materialidades liquefeitas.