Ploeg & Outras Narrativas

Essa exposição de pinturas de Roberto Ploeg comemora 65 anos de vida e 25 anos dedicados à arte. A seleção das obras segue a lógica de uma retrospectiva, pois recorta pinturas de diversas fases de trabalho que retratam a realidade da população nordestina e um mergulho no seu eu profundo.  Da sua origem holandesa à apropriação e reelaboração de ícones da América Latina e do povo do nordeste brasileiro.

Ploeg veio para o Brasil em missão religiosa, como operário da religião, da Teologia da Libertação até a sua metamorfose em operário da arte, onde encontrou motivação espiritual para sobreviver ao desmonte da teologia libertadora realizado pelo papa João Paulo II. Em 25 de junho de 1979 chega ao Recife para cursar mestrado em Teologia da Libertação, no Instituto de Teologia do Recife, ITER, que em latim significa caminho, itinerário. A teologia da libertação atuou fortemente no Brasil como canal de oposição à ditadura militar nos anos de 1964 a 1985.

Essa introdução é importante para entender as motivações de Ploeg para vir morar e trabalhar no Brasil. Ploeg é antes de tudo, um humanista em busca constante da justiça social e vê na práxis teológica libertadora a razão da sua existência. Filho europeu do pós guerra, vislumbra no Brasil um campo fértil para colocar em prática o seu sentimento de justiça, para logo a seguir, em 1985, sentir na pele o desmonte da Igreja progressista e popular no Brasil. E aí vem o destino transformar o rumo deste irrequieto personagem.

Em 1988 muda-se com sua família para o Sítio Histórico de Olinda, aonde experiencia o lugar e o momento certo de fazer arte. Olinda vivia um momento cultural importante com a instalação da Oficina Guaianazes de Gravura, no Mercado da Ribeira, em 1980, com cursos administrados no Museu de Arte Contemporânea de Olinda e posteriormente a instalação do Atelier Coletivo, na rua de São Bento. Neste ambiente propício as artes, Ploeg fez cursos de arte e descobriu a espiritualidade do fazer artístico, e desta espiritualidade nasceu o artista que conhecemos hoje.

Ao selecionar as obras para exposição na Arte Plural Galeria, fui acometido de forte emoção. Estar diante de quadros tão impactantes convoca sentimentos profundos. Retratos feitos a partir de antigas fotografias que rememoram e renovam passados. Esses quadros podem ser entendidos como documentos antropológicos, eles expõem o rigor da cultura holandesa evidenciada em fotos do grupo familiar, com separação por sexo; a família masculina e feminina, em telas distintas, como era comum à vida cotidiana da época. São pinturas realizadas a partir de fotos da família, reunida em 1961 na Holanda.  Lá está o agrupamento de crianças, frutos da explosão demográfica na Europa, após a segunda Guerra Mundial. A foto até parece gritar que a vida desafia a morte. Intitulados de “The babyboomers”, pinturas de grandes dimensões, impactantes ao primeiro olhar, intensos mergulhos e reconhecimento do seu eu, obras que unem e costuram todo o conteúdo narrativo das demais, que integram esta seleta. Telas que são origem e raiz de outro conjunto de narrativas onde cada retrato é conteúdo explícito, em linguagem poética e outras vezes nem tanto. Explícitas são as pinturas de Ploeg, não porque sejam retratos o tema, mas porque todas são carregadas de vida real. Por conhecimento, porque nesta viagem no tempo vivenciou no Brasil a vida do povo pobre brasileiro.

Plagiando Euclides da Cunha, Ploeg é antes de tudo um forte, chega ao Brasil, integra o movimento das comunidades eclesiais de base, vive e conhece a pobreza urbana e rural, sem perder a essência da sua raiz europeia. Dos nordestinos herda o olhar triste, um andar por caminhos incertos, uma constante certeza de que é preciso ser preciso para sobreviver. Persona da mata, agreste e sertão, holandês nordestino.

O “Autorretrato quando triste” expressa além do sentimento de perda do seu amigo Bernardo, a angústia pelo desmonte da jovem democracia brasileira, a partir de 2014. O retrato de Bernardo é uma obra prima, seu olhar de bondade é comovente. Já “O Cavalo Desolado” impressiona e dialoga com a “Moça com brinco de pérola”, em referências sutis, o olhar furtivo na mesma direção, o brinco e o rabo, do cavalo e da moça, à Vermeer. O atributo de uma emoção humana dado a um animal permite perceber o seu desencanto e a sua dor com a destruição das políticas públicas e sociais conquistadas.

O olhar parece ser um elo de ligação que permeia quase todos os retratados, são semblantes tristes, perdidos no espaço e no tempo, talvez a pensar utopias perdidas. A arte de Ploeg não é inocente, ela anuncia e denuncia com a delicadeza dos iluminados. Além de familiares, do seu autoconhecimento, de ícones da terra natal como a “Holandesa”, e dos seus filhos com imagens ao fundo resgatadas daquelas feitas por eles na infância, além da homenagem a Frida Kahlo, ícone do feminismo, da liberdade sexual e de engajamento social na América Latina. Se não é Frida, a retratada é Dió, em fundo de chita, rainha entronizada no altar da cultura nordestina.

Ploeg salienta que gosta de pintar pessoas do convívio local, amigos e principalmente populares da vizinhança. São pessoas da Vila Esperança, em 1998, no Alto do Monte, em Olinda, em meio a trabalhos humanitários na área realizados por sua companheira Ana. O Monte e sua Igreja do século XVI, seduz pintores, no mais das vezes pela paisagem de Olinda que dali se descortina. Ploeg não se deixa seduzir pelo espetáculo paisagístico, mas sim pelas pessoas da comunidade e pelo inusitado, onde até um defunto foi retratado “Vida e morte de Fátima”, quadro devorado por cupins. É desse período as pinturas “Travessia”, que retrata uma enfermeira muito popular no local e “Moça com pega rapaz” narrativa de uma jovem empoderada. 

Na Mangueira, bairro de Afogados no Recife, Ploeg pintou pessoas com deficiência física e mental. Em um deles, o maior desafio parece ter sido a modelo superar sua timidez e expor sua deficiência, à exemplo da pintura “Marta”, personagem sem braço e “Vamos ao Hexa” de uma deficiente psiquiátrica que considerou que Ploeg a pintou com os seios muito grandes.  Esses são os elos humanitários que unem quadros de tempos diversos na mostra. Não é uma retrospectiva, mas uma reunião de obras que retratam a realidade nua e crua do povo brasileiro.

A descoberta do pintor holandês Eckhout, através do amigo e pintor Eduardo Araújo, acentuou a tendência de pintar o Brasil através do seu povo e não pela paisagem, como outros artistas estrangeiros o fizeram. Até quando pinta um “Flamboyant”, ela é retrato e não paisagem.

Outras obras, presentes na mostra, seguem a mesma lógica, títulos que expõem a narrativa pictórica sem recorrer a subjetividades.  Em “Mulher embrulhada”, o artista não embrulha a obra de arte, mas sim as pessoas; “Eu sou mais Nil motos” pintura realizada em 9 módulos com personagens da redondeza; ”Um rei africano em Olinda” gari segurando a vassoura em como se fosse um cetro, “Sou Santa”; “Homero declamando seus versos” e, “O Buda”, jovem que vendia pasteis na garagem do vizinho em Olinda e que passou a morar com Ploeg e família. Para concluir, Ploeg incluiu o “Retrato de minha mãe aos 90 anos” em homenagem à sua mãe falecida em janeiro de 2020. Cada uma das pinturas, remetem a estórias que podem ser detalhadas pelo próprio artista nas visitas guiadas na galeria.

Roberto cita, com orgulho nomes, que foram importantes na sua trajetória além de Ana, sua companheira.  Lembra com carinho dos artistas do ateliê Coletivo, em especial Eduardo Araújo, a marchand Tereza Dourado, José Claudio, Guita e dos professores do MAC Olinda e do IAC, Recife: José Carlos Vianna, Delano, José de Moura, Gil Vicente, Eudes Mota e Fernando Lins. Fala com humildade e reconhecimento que impressiona, mas que reflete sua natureza religiosa. PLoeg é um documentarista, que recolhe e testemunha, em suas palavras, o mundo, melhor dizendo testemunha a dor e a cegueira humana. Ecce Homo.

Luciano Pinheiro
Novembro de 2020

 

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