Princípios Afins
Ana Catarina Mousinho e Hélia Scheppa
Origem e fim são da ordem do infinito
A linha é um ponto que foi passear.
“O trabalho deve permanecer a “caixa preta”. Vivo ou não. Isso é tudo. Se não for, para a cesta!” - Henri Michaux
De imediato algo que me chama a atenção nos trabalhos de Ana Catarina Mousinho é a onipresença da linha. E a linha é antes de tudo um meio de comunicação primordial. Elas fazem parte de nosso mundo, podem ser observadas em nosso cotidiano mais simples: arestas, caligrafias, hachuras, texturas, valores tonais, cores, gestualidades, figuras, expressões, etc. Uma lista de suas características físicas e materiais seria muito longa. Nas obras que vemos aqui elas podem vagar como em um desenho ansioso para submergir a si mesmo, numa espécie de investigação cega, podem ser curtas ou longas, finas ou espessas, dinâmicas ou mais estáveis, bem definidas ou ao contrário, baças, fora de foco, podem também se apresentar como o resultado em contraste do contato entre duas áreas de cor. Nem dominante nem companheira, mas insubmissa, rebelde.
No que tange o aspecto gráfico, nesta frase bem humorada do pintor Paul Klee que nos serve de subtítulo, está implícita a ideia de deslocamento, logo, trajetória do cruzamento de uma área e a temporalidade que dela advém. Narrativa. Contações, eu diria. Gosto deste neologismo [uma espécie de amálgama entre contar e ação] para escrever o que afinal não pode ser dito, explicado. Entre o pictórico e a escrita, e ao falarmos de escrita, falamos tanto de imagem quanto de textos, mas sobretudo de algo que só é definível por aquilo que o simbólico consegue definir, como a um poema. E poesia não significa. Ela mostra...o que não se exime de uma apologia do sabor, toda ela em detrimento do saber.
Seria então a característica de uma linguagem que vive em luta constante com os sentidos, como sua experimentação da impossibilidade.
A arte complexifica o mundo, não apenas o duplica, deixa-o mais rico, promove o tempo, o debate, o contraditório, um eterno devir que tem o poder de mostrar o que não está escancarado, vertigem do que jamais conseguiremos comunicar plenamente. Assim, a artista aqui usa a linha, no seu caso de um modo subjetivo, para agregar os significados objetivos ou emocionais às suas imagens. Instigantes deambulações que dão curso livre ao traçado sobre o suporte, variando o nível da espontaneidade do gesto. Alusivas. Ilegíveis. Mas toda imagem é uma pergunta em potencial, cujo valor expressivo difere de sua significação.
Poderíamos perguntar: suas imagens narram? Mas o que podem as imagens? O que querem as imagens, afinal? A imagem, assim como o poema, mostra, mas não conta. É muda. Toda imagem toca o real, uma vez que na memória tem a imaginação, o conhecimento. Os significados que possam vir a ser atribuídos via interpretação, são parte do poder de sugestão subconsciente por ela gerado. Imagens abrem muitas perspectivas sem que estas possam ser definidas com certeza, mas sim sugeridas, mais uma interrogação e menos uma exclamação. A imagem acessa o real pela memória. A lógica da mostração é do lado das analogias e não do discurso. As metáforas então, adquirem aí a sua importância. O ato de mostrar se inscreve no ato de expor. Cabe a nós dançarmos conforme a coreografia engendrada pela artista a partir do caos do mundo.
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Entre primeiros e últimos
A história só se constitui através do próprio ato de contá-la.
“A importância crucial de uma obra se revela a partir dos signos que ela coloca em disponibilidade para nossa reflexão” - Otávio PazNa série de imagens da fotógrafa Hélia Scheppa reunidas sobre a expressão “É Cedo!” e que vem sendo compartilhada nas redes sociais, nós nos deparamos sobretudo diante de uma historia de afeto. São imagens que poderiam, sim, constar dentro de um álbum de família, usada para fins de comunicação visual privada, mas que ao mesmo tempo não se restringem aos usos, hábitos e técnica usualmente ligados a esta forma específica de expressão cuja narrativa, em sua maioria, pretende ressuscitar para a memória, detalhes importantes, celebráveis
das nossas vidas.
O olhar de Hélia, ao contrário, adota uma visão menos conformista, elege, se interessa e torna memorável aqueles momentos que passariam desapercebidos a um olho destreinado, abraça aqueles instantes que não se fazem anunciar, onde não há pose nem sorrisos para a câmera, são instantâneos que trazem um traço estético e estilístico particular, o de serem captados no frescor do momento, sutis, exaltam a iluminação natural, o cenário cotidiano e simples. Estas imagens se confirmam como o fruto de uma observação atenta, contínua e muita intimidade com as pessoas retratadas.
A dimensão iconográfica e simbólica dada pelo foco preciso em uma imageria intergeracional entre a criança e a idosa, neste auscultar de um presente sincrônico, mostra-se através da decisão do ponto de vista adotado, do enquadramento, da história de cada gesto, de cada forma traçada pela luz. O campo natural da câmera é o mundo das coisas como elas são para as pessoas aqui envolvidas. São imagens que constituem uma poderosa narrativa pontuada por certos momentos, atitudes, locais, situações, ou idades, fatias de vida inseridas na grande marcha do tempo ao qual estamos todos submersos. Interações entre alfa e ômega, seríamos tentados a dizer.
Deixei implícito no início que esta é uma narrativa no presente, em processo, que vem servindo de mote para que Hélia propicie a seu público a possibilidade para que reflitamos sobre o que é mostrado nas imagens. O modo como respondemos à historia simbólica é mais importante do que a realidade dos fatos relatados em si. No que pesa o enorme valor pessoal e sentimental advindos dos laços de parentesco com aquelas que incidem sobre estas imagens para a autora, fotografar pessoas é sempre e acima de tudo se reportar à como vivemos, à nossa cultura e à sociedade nos moldes como a fazemos funcionar, reafirmando assim os valores de sua estrutura.
A fotografia, como parte da história das representações, se constituiu desde suas origens em um fator de empoderamento no que concerne à democratização da habilidade de fazer as próprias imagens. Mas o que caracteriza a nossa cultura atual com a internet, é a reconfiguração da estrutura do espaço público. Nós nunca tivemos privado e público, mídia e família no mesmo espaço, e o que era da ordem da invisibilidade se torna da ordem do visível. É uma cultura de glosas, de trocas onde a imagem tem um fator que é preponderante, e o ato de compartilhar tornou-se a assinatura desta operação cultural.
Curadoria de Maria do Carmo Nino