Renato Valle
As escolhas de Renato Valle
Outubro a Dezembro de 2019
Muitas foram as escolhas feitas por Renato Valle para a realização dessa exposição, que reúne, particularmente, pinturas de sua autoria, que tratam de reflexões sobre mais de quatro décadas de exercício artístico.
Apesar de não se tratar de uma mostra retrospectiva, a reunião desses trabalhos possui um caráter retrospectivo visto que o artista seleciona algumas séries de obras picturais, realizadas no passado, para sobre as mesmas se debruçar com um novo olhar, e a partir dessa nova percepção, evidentemente modificada ao longo do tempo, reconstruir as novas obras ora expostas na Arte Plural Galeria.
Ter sido escolhida por Renato para escrever esta narrativa muito me lisonjeou. Com muito gosto aceitei o convite, e embora esteja ciente da responsabilidade de apresentar a exposição de um artista que acumula uma trajetória de quatro décadas de exclusiva dedicação ao exercício da arte, também não posso deixar de considerar o nosso longo tempo de uma recíproca e fraterna amizade que remonta à época de juventude, quando éramos colegas de atelier de modelo vivo e exercícios de desenhos ao ar livre pelas ruas do Recife.
Para essa exposição, Renato realizou, ao todo, dezenove pinturas a óleo de dimensões variadas, entre elas um políptico composto por quatro telas e outro com doze.
Uma vez que ao longo dessas quatro décadas tive a oportunidade de acompanhar o seu caminho na arte, eu bem que poderia aqui simplesmente assinalar as correspondências e dissonâncias desse conjunto de pinturas com as suas séries anteriores, e a partir desse contexto analisar e interpretar a nova série de trabalhos, mas prefiro não seguir por este caminho, pois embora essas consonâncias e dissonâncias em relação ao passado sejam até certo ponto admissíveis, este tipo de abordagem fatalmente atuaria de modo negativo sobre essas novas pinturas no sentido de restringir-lhes a potência da sua condição presente. Então, em vez disso, optei por realizar uma leitura que antes prioriza a interpretabilidade da obra do que a sua interpretação, duas condições que se afirmam em sentidos antagônicos, onde “o interpretável é a consciência da obra, é acima de tudo a consciência de que a obra possui uma possibilidade interpretativa não corporizada na interpretação” (citando Carlos Vidal). Assim, enquanto que a condição de interpretação aponta para uma situação estável e conclusiva, contrariamente, a interpretabilidade implica numa inquietude, numa oscilação de sentidos própria de toda a obra de arte, cujas possibilidades de interpretação direcionam-se ao infinito, a exemplo de Las Meninas, de Velázquez, obra indiscernível, que não se permite incluir totalmente nos limites de qualquer interpretação, mas que por outro lado comporta aspectos interpretáveis, porque o interpretável se direciona ao infinito, é aquilo que não pode ser interpretado.
Ainda a propósito da interpretação e seus limites, assim como em Velázquez a obra de Duchamp é um exemplo emblemático. Porém em Duchamp a oscilação, ou seja, o intervalo entre a afirmação e a negação foi a tônica que permeou toda a sua obra, muitas vezes percebidas através da oposição entre o título do trabalho e a imagem ali presente. Deste modo, como obra aberta, interpretável, não submetida a quaisquer delimitações temáticas, diversos rumos do pensamento podem ser cogitados pelo observador atento e sensível.
Essas e outras reflexões me despertaram para esta narrativa desde a recente visita que fiz ao atelier de Renato, no momento em que as obras estavam devidamente finalizadas para a mostra. Nesse encontro pude finalmente vislumbrar o conjunto total; nos primeiros momentos da minha observação todas as obras me pareceram familiares, com exceção de uma delas, a Máquina de fazer fumaça, que pensei tratar-se de um trabalho abstrato até antes de tomar conhecimento do seu título, pois atraiu-me sobretudo a delicadeza da “pele” dessa pintura como um aspecto que se sobrepunha ao restante dos elementos nela inseridos. Essa “pele” que se isolava do quadro e ao mesmo tempo o isolava do conjunto conduziu o meu olhar para uma realidade distante da realidade natural e transformava a imagem como que uma “aparição” etérea, ou “uma forma que se desenvolve segundo seus princípios internos” como diz Riegl.
Justamente essa obra, A máquina de fazer fumaça, cujo título aparentemente a aproxima do seu próprio conteúdo e que mantém uma certa distância do contexto das outras pinturas, se tornou o ponto de partida para a percepção da exposição como um todo. Sua “pele”, ou seja, o tratamento da sua superfície, acarinhada por meio de delicados gestos do artista, através de sobrepostos véus de tinta muito diluída, me despertou para o comportamento da superfície das outras pinturas do conjunto total.
Um outro trabalho que me desperta para a questão da aparente aproximação do título com o conteúdo é Oratório. Nesta obra, a relação objeto/função me remete à noção de Kunstwollen, termo criado por Riegl, de tradução ampla, que aponta para uma correlação entre o mero artefato e o objeto de arte, onde a forma de um objeto prosaico se desenvolve segundo princípios internos, independentemente do seu conteúdo simbólico e função, como se a forma fosse dotada de um espírito próprio e possuísse uma motivação artística íntima. Neste contexto, não apenas Oratório, mas também as que se intitulam de Cristos e Anticristos(Jogo), natureza morta (Jogo), Mealheiro 1 e Mealheiro 2, convergem para uma reflexão sobre esses conceitos, visto que nessas obras há um preciosismo maior no tratamento das respectivas superfícies que indicam a preocupação do autor com a verossimilhança dos objetos em relação à sua configuração natural, e mesmo que a evidente intenção do artista tenha sido a de perseguir conceitos vinculados a aspectos da cultura popular, ou ainda em torno de motivações afetivas, vivenciais e críticas em relação à fé religiosa e à essência das coisas, como é o caso dessas obras supra citadas, há nelas um caminho vasto no sentido da interpretabilidade.
Distribuídas por outros recintos do atelier encontram-se trabalhos que compõem uma pequena população de seres que exibem diversas gradações de humanidade, alguns parecem possuir alguma vida, outros, uma semivida. Em maior ou menor grau, também esses seres, mesmo os que demonstram uma vitalidade fraca, suas respectivas aparências ora parecem esbarrar ou, contrariamente, ir ao encontro das suas verdadeiras essências. Aqui, essência e aparência formam um jogo; nesse jogo, virtudes e imperfeições se mesclam. Impossível identificar o quanto de humanidade carregam esses seres; uns são ainda recém-nascidos, outros, já adultos.
Os recém-nascidos, em diferentes escalas situam-se entre simulacros de brinquedos de plástico e bebês humanos, a depender das sutis nuances de volume exibido pelo tecido da pele que os cobre. Deste modo, oscilantes entre o mundo sensível e o mundo inteligível, esses semi-humanos inspiram cuidados físicos e mentais, estão jogados no vácuo – fundo de cor plana dessas obras – e, sem chão ou teto, alguns cultivam o vazio do vício. Já adultos, esses humanoides se encontram fora do seu eixo de gravidade e estão devidamente acomodados no chão. Devido a alguma enfermidade da alma – Arrogância, Inércia... -, pois autoprovocaram involuntariamente protuberâncias na pele do seu corpo; descompensaram-se então, tornaram-se escravos da (sua) materialidade física, impedidos de movimento e insensíveis ao mundo sensível, pois perderam o poder de capta-lo através dos sentidos.
Ainda fazendo parte desse jogo de essências e aparências, mas ao mesmo tempo se isolando desse agrupamento de seres semi-humanos, aparecem mais três pinturas: Sex, Ex-voto e Clausura. A primeira, uma volumosa figura feminina (uma Vênus?), a percebo como a mais vital desse grande subconjunto, pois apesar de possuir um corpo distante de padrões ideais da beleza ocidental, é dona de um algum erotismo. Não fosse pela ingenuidade do seu semblante e pelo ambiente asséptico, luminoso e econômico de elementos, em que esta figura feminina se encontra, sua pele nacarada, sua obesidade e sua provocante postura corporal geram uma atmosfera levemente aproximada a Mademoiselle O`Murphy, uma das odaliscas de Boucher.
Na segunda obra, Ex-voto, as protuberâncias ganham novos sentidos, pois a conciliação entre formas orgânicas e geométricas, implica tratar-se de uma cabeça/objeto, fazendo alusão ao próprio título. Entretanto, ao atentar para o fundo sobre o qual está disposta a figura, verifica-se a existência de uma forte oposição cromática que resulta na formação de uma “aura” imaterial, pouco visível, que contorna toda a figura, causando a impressão de uma alusão à essência divina que se encerra nesse objeto de devoção que é o ex-voto.
No terceiro trabalho, o mais isolado do conjunto, surge uma figura (humana?) que literalmente se fecha em si mesma. Em vez de pele, ataduras transparentes que a substitui, e sob essas ataduras, com alguma dificuldade entrevemos seus órgãos vitais. Por falta de acesso torna-se também a mais enigmática; sua natureza oscilante entre o que é e o que aparenta ser, entre a morbidez e a vitalidade, suspende nossa certeza.
Eu bem que poderia, a essa altura, prolongar esta narrativa, evoluindo as questões que sobretudo pontuei, tais como o comportamento das superfícies (pele da pintura), as distâncias entre essência e aparência, ou mesmo tratar mais profundamente sobre as oscilações, ou sobre o entrelaçamento natural entre o objeto banal e o objeto artístico. Considero que o surgimento dessas questões, construídas de modo transversal, se devem aos caminhos inquietantes e labirínticos abertos pela noção de interpretabilidade que acolhi, porém devo acrescentar que minha credibilidade nesse tipo de abordagem advém da convicção de que todos os desdobramentos da pintura, em termos da sua interpretabilidade, são gerados pela matriz espiritual, cuja gestação acontece no escuro do atelier, onde o artista é dominado pela “cegueira” e onde a visualidade é apenas uma ilusão da verdade.