Em 1968, “o ano que não acabou”, o estudante secundarista Edson Luís de Lima Souto foi assassinado por policiais militares que invadiram o restaurante Calabouço, no Centro do Rio de Janeiro, durante uma manifestação estudantil. A mais de 2 mil quilômetros, na Paraíba, o artista plástico Raul Córdula quis exteriorizar sua indignação com uma exposição temática sobre o episódio. A mostra não apenas foi censurada, como o paraibano de 25 anos teve de deixar o estado. Foi trabalhar como cenógrafo em emissoras de televisão do eixo Rio-São Paulo.
Até então, Raul era ligado a uma vertente mais figurativa, com diálogo com a pop art e a nova figuração. Com o período da censura, encontrou uma nova chance de se expressar usando do abstracionismo geométrico, escola que tem gênese nas vanguardas europeias, mas ganhou força no Brasil durante a década de 1950. Foi justamente nessa estética que Raul Córdula se consagrou como personalidade da arte contemporânea nacional, chegando a idealizar o Núcleo de Arte Popular e Artesanato – NAP, da Casa de Cultura de Pernambuco (1997).
“Recorri à geometria para dizer coisas que eu não conseguia mais dizer. Inclusive, brigo com quem acha meus quadros apenas bonitos ou decorativos”, diz Córdula, hoje com 74 anos, em entrevista ao Viver. Prestes a completar seis décadas de carreira, ele apresenta uma nova exposição na Arte Plural Galeria, no Bairro do Recife. A entrada é gratuita, com curadoria da paulista Joana D’Arc Lima.
Intitulada Raul Córdula, a mostra reúne 18 peças produzidas nos últimos dez anos, sendo algumas delas feitas especialmente para a ocasião. Desta vez, o mote é uma reflexão do artista entre o tempo e o espaço. Raul usa dos seus consagrados traços geométricos para resgatar momentos e locais representativos em sua trajetória. Em telas intituladas Borborema – sinal do céu, por exemplo, ele resgata fotografias da Serra da Borborema, na Paraíba. Algo similar está presente na obra Rupestre – Pedra do Ingá, reforçando sua ligação com a paisagem nordestina, desta vez com uma paleta de cores mais neutra – ele é conhecido por usar cores mais fortes e singulares.
Na série Encéfalos, ele faz reconstituições de ressonâncias magnéticas de sua própria cabeça. Outra vertente da mostra, ainda dentro dessa temática do tempo, traz obras de teor mais político. Um conjunto de três telas representa bandeiras com “tinta escorrendo”, demonstrando certa fragilidade da situação social e política do país. Uma delas exibe a bandeira nacional e, no lugar do círculo azul com estrelas, uma mão engatilha uma arma de fogo em direção ao visitante. “É um quadro que foi pintado em 2012 e está mais atual agora, como uma espécie de premonição”, conta Raul. “Costumo dizer que não represento o fato social, mas o simbolizo. Sempre procurei variar entre a gestualidade e a mentalidade, mas nunca saí da questão simbólica. Faço pintura pela pintura mesmo.”
Para a curadora Joana D’Arc Lima, a exposição marca, primeiramente, a importância do artista na própria Arte Plural Galeria, onde ele já fez outras mostras. “Desde 1968, quando ele vem trabalhando mais na questão geométrica, a história do Raul começa a dialogar um pouco com a história da arte contemporânea brasileira. Isso porque, naquela época, a produção abstrata estava ganhando força no Brasil, sem se confrontar com o figurativo, mas ganhando um espaço singular. E, dentro desse contexto, são raros os nordestinos que integraram um lugar de reconhecimento pelos cânones das artes”, comenta a paulista. “A exposição procura apontar o Raul como um artista que estava e ainda está antenado com o tempo presente. Quando ele vai para a abstração, continua falando de questões externas de um tempo que viveu. A mostra traz muitas camadas de temporalidades em torno das artes visuais e questões políticas que estamos imersos.”
Por: Emannuel Bento – Diario de Pernambuco